Mundo Cão

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No seu livro de 1963 chamado “Cat’s Cradle”, o escritor Kurt Vonnegut aborda o tema da livre vontade e da relação do homem com a tecnologia. Fá-lo com a mestria literária que lhe é própria, criando, num país imaginário chamado San Lorenzo, liderado por um brutal ditador de nome “Papa” Montazo, uma religião designada como bakononismo: uma religião baseada no gozo da vida através da criação de pequenas mentiras, designadas “foma”. Os grupos de pessoas que estão verdadeiramente ligadas entre si e ao mundo, ainda que tais ligações não sejam óbvias e formalizadas (podem ser até cósmicas), formam um “karass”, sendo que um
“grandfallon” é o seu contrário: é um falso “karass”, ou seja, grupos de pessoas que imaginam que estão ligadas umas às outras, mas que, na verdade, não estão.
Nesta visão ficcional de Vonnegut, a verdadeira ligação das pessoas ao mundo não passa pela forma da ligação, mas pela essência da não-ligação . Impossível não pensarmos nos dias de hoje e no que significa “estar ligado”. Hoje, estar ligado passou a ser um processo tecnológico de mera forma e não, como deveria, um fenómeno humano de substância: hoje ligamo-nos a uma rede social e abstraímos da essência da ligação. Substituímos as emoções, os contactos e os olhares por “likes”, visualizações e emojis. Por isso é que para nos ligarmos humanamente aos outros e ao mundo, temos que estar, verdadeiramente, desligados tecnologicamente.
Estar desligado, neste sentido, é um processo existencial de verdade. É este o sentido que o termo “desligado” toma no novo trabalho de Mundo Cão. Só estamos verdadeiramente ligados – só somos um karass – se estivermos tecnologicamente desligados.
Foi esta a proposta de conceito que os letristas Adolfo Luxúria Canibal, Valter Hugo Mãe e Carlos Conceição trabalharam, escrevendo, como só eles sabem fazer, sobre as emoções humanas como processo de ligação entre pessoas, começando no amor bocageano de “as mulheres que muito amamos sem regresso nem lamento”, passando pela saudade de uma paixão perdida em “vamos ver os pavões voar”, visitando o enraizamento boémio de um herói numa cidade meretriz, em “cidade lupanar”, ou caindo numa paixão animal e feroz em “ladra até me acordar”; escrevem ainda sobre o supremo prazer de viver o momento em “um fugaz luar”, ou sobre a impossibilidade de um amor possível em “é sempre essa treta do amor eterno que me lixa” ; em “acerca da cadelita ferida e torta a resvalar para o lado do coração” sentimos com os protagonistas da história que, afinal, o amor nasce do erro; e entramos num festim hedonista e dionisíaco em “um milhão a render”, para, de seguida, encontrar-mos o amor como refúgio para um passado de sofrimento e dor, em “Meu grande amor”,
terminando com o prazer carnal de uma paixão desequilibrada, em “paixão malsã”.
Ligamo-nos ao mundo, desligando-nos do resto.

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